Se me perguntarem sobre que trata este livro só poderei responder: a velhice. Assim de forma nua e crua porque é assim que todo o livro está escrito, de forma crua, dolorosa e ao mesmo tempo com alguma sensibilidade em relação a essa época do fim de vida.
Tendo sido o primeiro livro que li deste autor cabe-me realçar o tipo de escrita do autor, sem maiúsculas, sem indicações de discurso directo, passando por cima das regras da boa escrita que todos aprendemos. Este tipo de escrita em nada acrescenta valor ao livro, é uma clara ousadia que nos faz, inevitavelmente, compará-lo com Saramago que também ignorava muitas das regras de escrita. Ainda assim, vou ignorar este ponto negativo na minha descrição do livro.
A história passa-se num lar de idosos onde António Silva chega depois de ter perdido a sua mulher, Laura, companheira de uma vida inteira, onde é colocado pela filha, ainda que esteja suficientemente lúcido para estar sozinho e por isso ali chega num misto de revolta e solidão. É através do próprio que conhecemos a sua vida passada e aquela que agora tem de enfrentar com novas pessoas, novos amigos dos quais se destaca Esteves, uma personagem que diz ter sido inspiração de um poema de Pessoa.
Ao mesmo tempo que é uma história cómica, é também angustiante que a vida se acabe assim, daquela forma para os tantos velhinhos que ali estão a ver o dia passar. É um livro que acaba por nos fazer pensar e dar mais valor a esta fase da vida e a estas pessoas que têm tantas histórias ainda por contar.
O livro tem alguns diálogos hilariantes, sejam fruto da senilidade de alguns ou se devam ao facto de com aquela idade já se poder dizer tudo, esses diálogos traduzem-se em críticas à sociedade e à classe política da actualidade.
No entanto, parece-me que se assume aqui um estereótipo claro pois nem todos os idosos são assim depositados num lar e praticamente abandonados pelas famílias.
Ainda assim, fiquei com curiosidade para ler outros livros deste autor que está a ter tanto sucesso entre esta nova geração de autores, a história é muito cativante.
Deixo aqui algumas passagens aleatórias que de alguma forma marcaram:
"e a reforma é que devia vir mais cedo. antes das dores nas costas e da perda de jeito para conduzir. eu já não conduzo nada. fico encandeado com as luzes e confunde-me o barulho e a gente a vir de todos os lados."
(...)
"ó senhor cristiano, não vai falar outra vez do regime. não é isso, é que é importante pensar nestas coisas, respondia ele. estamos para aqui todos fascistas, com pensamentos de um fascismo indelével a achar que antigamente é que era bom. este é o fascismo remanescente que vem das saudades. sabe, acharmos que salazar é que arranjaria isto, que ele é que punha esta juventude toda na ordem, é natural, porque temos medo destes novos tempos, não são os nossos tempos, e precisamos de nos defendermos. quando dizemos que antigamente é que era bom estamos só a ter saudades, queremos na verdade dizer que antigamente éramos novos, reconhecíamos o mundo como nosso e não tínhamos dores de costas nem reumatismo. é uma saudade de nós próprios, e não exactamente do regime e menos ainda de salazar."
(...)
"(...) que antigamente havia vergonha, e agora devem estar a tirá-la dos dicionários. toda a gente lê a bola e o problema é que a bola nem sequer explica porque é que o benfica não ganha quando não faz sentido que uma equipa daquelas, sustentada daquele modo, perca desavergonhadamente. "
(...)
"até os nossos euros haviam de pensar serem escudos numa crise de identidade à portuguesa como nunca se viu outra. é que somos estuporados por todo o lado, pagamos o mesmo que a europa paga por qualquer coisa, mas ganhamos três vezes menos. temos salário de rato. salário de humanos de segunda. porque os nossos governos não têm tomates suficientes para ler a bola e ordenar que o benfica seja campeão."
(...)
"vocês já perceberam que se o benfica fosse campeão o país até se começava a levantar da letargia. dizem que têm seis milhões de adeptos, o benfica campeão havia de funcionar como combustível nos espíritos da nação e pôr esta gente toda a bulir. "
(...)
"é que no meio disto tudo os cães no algarve têm de aprender a miar porque ali ninguém sobrevive sem falar duas línguas."
(...)
"(...) portugal ainda é uma máquina de fazer espanhóis. é verdade, quem de nós, ao menos uma vez na vida, não lamentou já o facto de sermos independentes. quem, mais do que isso até, não desejou que a espanha nos reconquistasse, desta vez para sempre e para salários melhores."
Esta é a história de quem, no momento mais árido da vida, se surpreende com a manifestação ainda de uma alegria. Uma alegria complexa, até difícil de aceitar, mas que comprova a validade do ser humano até ao seu último segundo. "A Máquina de Fazer Espanhóis" é uma aventura irónica, trágica e divertida, pela madura idade, que será uma maturidade diferente, um estádio de conhecimento outro no qual o indivíduo se repensa para reincidir ou mudar. O que mudará na vida de antónio silva, com oitenta e quatro anos, no dia em que violentamente o seu mundo se transforma?
Fonte: fnac.pt