quinta-feira, 27 de março de 2014

Niassa, de Francisco Camacho


Niassa, livro com o mesmo nome de um dos lagos mais misteriosos de Moçambique, é uma história de descoberta, tanto a nível pessoal como a nível familiar.

Cansado da vida boémia em Cascais, cansado das festas de fim de Verão, de fim disto ou daquilo, aos trinta anos, o mais jovem da família Garcia decide partir para as profundezas de Moçambique para procurar o irmão Rafa que mal conhece, de quem ninguém sabe há algumas semanas. A sua viagem por Moçambique leva-nos a conhecer um pouco de Moçambique e do seu passado português.

Este é um romance contemporâneo que ajuda a perceber um pouco mais desse bocado da história que foi a presença portuguesa em África, sem saudosismos, através de algum detalhe mas com uma escrita clara e objectiva como é característico dos jornalistas, classe a que Francisco Camacho pertence.

Os livros que descrevem África e a influência que de alguma forma os portugueses lá tiveram continuam a fascinar-me, não que alguma vez me tenha passado pela cabeça sequer visitar algum deles. Este livro foi lido num ápice e no fim ficou aquela saudade de um livro que ainda não devia ter acabado, ainda havia tanto que eu queria saber.
"Esperar algum reconhecimento daquela gente era o mesmo que fazer uma visita guiada com um grupo de fornacos por um museu de bonecas de porcelana e contar com um forte aplauso no fim."
FARTO DA VIDA QUE LEVA EM LISBOA, um homem de trinta anos resolve partir para o Niassa, a região de Moçambique onde existe um dos maiores e mais enigmáticos lagos africanos, à procura do irmão que desapareceu em circunstâncias misteriosas e que ele mal conhece.A investigação do paradeiro de Rafa leva-o a peregrinar pelos sonhos de grandeza dos tempos coloniais, pela brutalidade da guerra civil moçambicana e pela história trágica da sua família, numa viagem ao imprevisto decorrida entre paisagens deslumbrantes.
Fonte: fnac.pt

A Máquina de Fazer Espanhóis, de Valter Hugo Mãe


Se me perguntarem sobre que trata este livro só poderei responder: a velhice. Assim de forma nua e crua porque é assim que todo o livro está escrito, de forma crua, dolorosa e ao mesmo tempo com alguma sensibilidade em relação a essa época do fim de vida.

Tendo sido o primeiro livro que li deste autor cabe-me realçar o tipo de escrita do autor, sem maiúsculas, sem indicações de discurso directo, passando por cima das regras da boa escrita que todos aprendemos. Este tipo de escrita em nada acrescenta valor ao livro, é uma clara ousadia que nos faz, inevitavelmente, compará-lo com Saramago que também ignorava muitas das regras de escrita. Ainda assim, vou ignorar este ponto negativo na minha descrição do livro.

A história passa-se num lar de idosos onde António Silva chega depois de ter perdido a sua mulher, Laura, companheira de uma vida inteira, onde é colocado pela filha, ainda que esteja suficientemente lúcido para estar sozinho e por isso ali chega num misto de revolta e solidão. É através do próprio que conhecemos a sua vida passada e aquela que agora tem de enfrentar com novas pessoas, novos amigos dos quais se destaca Esteves, uma personagem que diz ter sido inspiração de um poema de Pessoa.

Ao mesmo tempo que é uma história cómica, é também angustiante que a vida se acabe assim, daquela forma para os tantos velhinhos que ali estão a ver o dia passar. É um livro que acaba por nos fazer pensar e dar mais valor a esta fase da vida e a estas pessoas que têm tantas histórias ainda por contar.

O livro tem alguns diálogos hilariantes, sejam fruto da senilidade de alguns ou se devam ao facto de com aquela idade já se poder dizer tudo, esses diálogos traduzem-se em críticas à sociedade e à classe política da actualidade.

No entanto, parece-me que se assume aqui um estereótipo claro pois nem todos os idosos são assim depositados num lar e praticamente abandonados pelas famílias.

Ainda assim, fiquei com curiosidade para ler outros livros deste autor que está a ter tanto sucesso entre esta nova geração de autores, a história é muito cativante.


Deixo aqui algumas passagens aleatórias que de alguma forma marcaram:

"e a reforma é que devia vir mais cedo. antes das dores nas costas e da perda de jeito para conduzir. eu já não conduzo nada. fico encandeado com as luzes e confunde-me o barulho e a gente a vir de todos os lados."
(...)
"ó senhor cristiano, não vai falar outra vez do regime. não é isso, é que é importante pensar nestas coisas, respondia ele. estamos para aqui todos fascistas, com pensamentos de um fascismo indelével a achar que antigamente é que era bom. este é o fascismo remanescente que vem das saudades. sabe, acharmos que salazar é que arranjaria isto, que ele é que punha esta juventude toda na ordem, é natural, porque temos medo destes novos tempos, não são os nossos tempos, e precisamos de nos defendermos. quando dizemos que antigamente é que era bom estamos só a ter saudades, queremos na verdade dizer que antigamente éramos novos, reconhecíamos o mundo como nosso e não tínhamos dores de costas nem reumatismo. é uma saudade de nós próprios, e não exactamente do regime e menos ainda de salazar."
(...)
"(...) que antigamente havia vergonha, e agora devem estar  a tirá-la dos dicionários. toda a gente lê a bola e o problema é que a bola nem sequer explica porque é que o benfica não ganha quando não faz sentido que uma equipa daquelas, sustentada daquele modo, perca desavergonhadamente. "
(...)
"até os nossos euros haviam de pensar serem escudos numa crise de identidade à portuguesa como nunca se viu outra. é que somos estuporados por todo o lado, pagamos o mesmo que a europa paga por qualquer coisa, mas ganhamos três vezes menos. temos salário de rato. salário de humanos de segunda. porque os nossos governos não têm tomates suficientes para ler a bola e ordenar que o benfica seja campeão."
(...)
"vocês já perceberam que se o benfica fosse campeão o país até se começava a levantar da letargia. dizem que têm seis milhões de adeptos, o benfica campeão havia de funcionar como combustível nos espíritos da nação e pôr esta gente toda a bulir. "
(...)
"é que no meio disto tudo os cães no algarve têm de aprender a miar porque ali ninguém sobrevive sem falar duas línguas."
(...)
"(...) portugal ainda é uma máquina de fazer espanhóis. é verdade, quem de nós, ao menos uma vez na vida, não lamentou já o facto de sermos independentes. quem, mais do que isso até, não desejou que a espanha nos reconquistasse, desta vez para sempre e para salários melhores."

Esta é a história de quem, no momento mais árido da vida, se surpreende com a manifestação ainda de uma alegria. Uma alegria complexa, até difícil de aceitar, mas que comprova a validade do ser humano até ao seu último segundo. "A Máquina de Fazer Espanhóis" é uma aventura irónica, trágica e divertida, pela madura idade, que será uma maturidade diferente, um estádio de conhecimento outro no qual o indivíduo se repensa para reincidir ou mudar. O que mudará na vida de antónio silva, com oitenta e quatro anos, no dia em que violentamente o seu mundo se transforma?
Fonte: fnac.pt

A Ilustre Casa de Ramires, de Eça de Queirós


Gonçalo Mendes Ramires, o Fidalgo da Torre, é a figura central desta história, descendente de uma família muito antiga, nobre, com grandes posses e nome na sociedade da altura. Nesta obra é-nos relatada toda a história familiar dos Ramires, num romance histórico a par com a descrição contemporânea da vida na província. A bisbilhotice, mesquinhez e intrigas da vida provinciana estão bem patentes em cada parágrafo da descrição da vida na aldeia, o que se torna num ponto comum com outras obras de Eça que li.
Gonçalo, a personagem central, surge aqui na personificação de Portugal, com os seus medos, mentiras, a decadência, a cobardia, a futilidade, a falta de vontade, mas ao mesmo tempo a aspiração a ser uma grande figura na sociedade, com nome e feitos históricos familiares mas um futuro incerto e até amargo.
Eça de Queirós era um grande observador e crítico da socidade portuguesa e este livro vem mais uma vez atestar essa perspicácia tão sua em colocar numa obra um retrato tão fidedigno de Portugal no século XX que em muito toca no Portugal da actualidade.

Gonçalo Mendes Ramires é efectivamente Portugal, conforme se pode ler nesta passagem do livro:

"- Talvez se riam. Mas eu sustento a semelhança. Aquele todo de Gonçalo, a franqueza, a doçura, a bondade, a imensa bondade, que notou o Sr. padre Soeiro... Os fogachos e entusiasmos, que acabam logo em fumo, e juntamente muita persistência, muito aferro quando se fila à sua ideia... A generosidade, o desleixo, a constante trapalhada nos negócios, e sentimentos de muita honra, uns escrúpulos, quase pueris, não é verdade?... A imaginação que o leva sempre a exagerar até à mentira, e ao mesmo tempo um espírito prático, sempre atento à realidade útil. A viveza, a facilidade em compreender, em apanhar... A esperança constante nalgum milagre, no velho milagre de Ourique, que sanará todas as dificuldades... A vaidade, o gosto de se arrebicar, de luzir, e uma simplicidade tão grande, que dá na rua o braço a um mendigo... Um fundo de melancolia, apesar de tão palrador, tão sociável. A desconfiança terrível de si mesmo, que o acobarda, o encolhe, até que um dia se decide, e aparece um herói, que tudo arrasa... Até aquela antiguidade de raça, aqui pegada à sua velha Torre, há mil anos... Até agora aquele arranque para a África... Assim todo completo, com o bem, com o mal, sabem vocês quem ele me lembra?
- Quem?...
- Portugal."

Outras passagens do livro que por algum motivo foram marcantes:

"- Oh, senhores! Que eu não possa vir à cidade sem encontrar de cara este animal do Cavaleiro! E sempre no largo, defronte da casa! É sorte!... Esse bigodeira não achará outro lugar para onde vá caracolar com a pileca?"
(...)
"- Pois é necessário um menino. Eu por mim não caso, não tenho jeito: e lá se vão desta feita Barrolos e Ramires! A extinção dos Barrolos é uma limpeza. Mas, acabados os Ramires, acaba Portugal.(...)"

(...)
"- Mas o que não compreendo, menino, é esse o teu «horror» pela D. Ana... Caramba! Mulher soberba! Um quebrado de quadris, uns olhões, um peitoril..."
(...)

"Agora porém, durante três, quatro anos, os regeneradores não trepavam ao Governo. E ele, ali, através desses anos, no buraco rural, jogando voltaretes sonolentos na Assembleia da vila, fumando cigarros calaceiros nas varandas dos Cunhais, sem carreira, parado e mudo na vida, a ganhar musgo, como a sua caduta, inútil Torre! Caramba! era faltar cobardemente a deveres muito santos para consigo e para com o seu nome!...  Em breve os seus camaradas de Coimbra penetrariam nos altos empregos, nas ricas companhias; muitos nas Câmaras por vacaturas abençoadas, como a do Sanches; um ou outro mesmo, mais audaz ou servil, no Ministério. Só ele, com talentos superiores, um tal brilho histórico, jazeria esquecido e resmungando como um coxo numa estrada, quando passa a romaria."
(...)

"Meu filho, onde não há saia, não há ordem!"

Com base nas edições críticas publicadas pela Imprensa Nacional-Casa da Moeda sob a coordenação do Professor Carlos Reis, a Presença dá a conhecer ao público em geral o texto que corresponde à última vontade do autor fixado em edição corrente. A partir deste critério foram já publicados "O Mandarim"; "A Capital!" e "Alves e Cª". A primeira versão de "A Ilustre Casa de Ramires", embora ainda incompleta, foi publicada na Revista Moderna entre 1897 e 1899. A partir desta primeira versão, Eça reescreveu este romance, que foi publicado em livro em 1900 – após a morte do escritor nesse ano – sendo por isso considerada uma obra «semipóstuma».
Fonte: fnac.pt