O mais recente romance de Miguel Sousa Tavares já fez correr muita tinta fruto de opiniões bastante diversas, pessoas espantadas que não julgam ter sido possível o mesmo autor a escrever o brilhante Equador e esta obra de segunda, de acordo com opiniões a que sou alheia.
Na minha modesta opinião, que vale o que vale, Madrugada Suja não está claramente ao nível de Equador porque não é esse o propósito desta obra. Madrugada Suja não pretende ser um romance histórico que prende e apaixona, Madrugada Suja é um romance que esconde uma crítica à vida social e política do nosso país no pós-revolução, é uma viagem pela corrupção e pelos subornos, pelos jogos de interesses, pela desertificação do interior, pela política suja, e, arrisco a dizer, bem conseguida.
A história começa com um acidente causado pela loucura das festas universitárias mas depressa nos leva a uma aldeia perdida no meio do Alentejo, Medronhais da Serra, à qual já poucos habitantes restam. Foi em Medronhais da Serra que Filipe cresceu, perdendo a mãe e posteriormente o pai, foi criado pelos avós, pessoas que sempre viveram naquele lugar e que não pretendem dali sair. Filipe, sendo a personagem mais central da história, vê-se envolvido em jogos de interesses, corrupção, dilemas interiores e todo um conjunto de situações que se materializam nas críticas do autor.
É um livro envolvente com romance, história, crítica e política e frisa-nos em várias situações que um pequeno erro acompanha-nos para o resto da vida e, quando menos esperamos, os segredos são revelados e a vida como a conhecíamos pode deixar de existir.
Muito para lá do romance, Madrugada Suja é uma crítica dura ao nosso Portugal.
Li-o compulsivamente, com a curiosidade que os livros do Miguel Sousa Tavares me causam.
Do livro todo apenas condeno o final, é um final pouco realista para uma história com tantas verdades.
Um pequeno excerto do livro:
"Um Portugal de aldeias mortas, de comerciantes falidos, de agricultores sentados à berma das estradas construídas com os dinheiros da Europa, vendo passar os grandes camiões TIR que traziam de Espanha e dessa Europa as frutas e os legumes criados em estufas maiores do que quaisquer hortas deles, em direcção aos centros comerciais onde, em breve, eles próprios aprenderiam o novo e insípido sabor dos melões e das cebolas, dos reinventados “frangos do campo”, ou dos porcos sem gordura nem pecado, embalados em vácuo."
O livro, nas palavras de Miguel Sousa Tavares:
Um surpreendente romance
sobre o Portugal que construímos.
Três histórias que se cruzamdesde uma aldeia deserta até ao topo do poder.No princípio, há uma madrugada suja: uma noite de álcool de estudantes que acaba num pesadelo que vai perseguir os seus protagonistas durante anos.Depois, há uma aldeia do interior alentejano que se vai despovoando aos poucos, até restar apenas um avô e um neto. Filipe, o neto, parte para o mundo sem esquecer a sua aldeia e tudo o que lá aprendeu. As circunstâncias do seu trabalho levam-no a tropeçar num caso de corrupção política, que vai da base até ao topo. Ele enreda-se na trama, ao mesmo tempo que esta se confunde com o seu passado esquecido.Intercaladamente, e através de várias vozes narrativas, seguimos o destino dessa aldeia e em simultâneo o dos protagonistas daquela madrugada suja e daquela intriga política. Até que o final do dia e o raio verde venham pôr em ordem o caos aparente.
Excerto
«E agora, de volta à minha aldeia, onde a luz eléctrica chegara tarde demais para os homens, madrugada dentro, eu lia o Guerra e Paz. Numa aldeia morta, numa noite deserta, seguia, como se estivesse a ver, o esplendor dos salões de baile do Império Russo, a imensidão das estepes gélidas, os gritos de horror dos estropiados pelo fogo dos canhões de Napoleão Bonaparte, e chegava-me mais ao calor da lareira para não sentir a solidão das trincheiras de lama, húmidas, frias, desoladas, onde se abrigava o exército de Kutúsov. Alguém dissera um dia que se podia viver sem tudo, menos água e comida, mas que viver sem livros e sem música não seria o mesmo que viver.»
Fonte: fnac.pt
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