José Saramago mostra-nos, em "Caim", a sua capacidade de contar histórias desconcertantes e polémicas que chocam mentalidades. Pode ser encarado como um ajuste de contas entre Saramago e Deus colocando a nú todas as suas descrenças, através de uma ironia desconcertante, levando ao ridículo as histórias que nos são tão familiares escritas no Antigo Testamento, entre os quais as histórias de Adão e Eva, da Torre de Babel, de Moisés a descer do Monte Sinai, do sacrifício do filho de Abraão, do Dilúvio, entre outras.
Um livro marcante com diálogos soberbos entre Caim e Deus.
Saramago é aquele autor que leio sempre com um dicionário à mão, ainda que muitas palavras se entendam no contexto em que estão, vale sempre a pena conhecer o seu significado efectivo. Algumas das palavras cujo significado fiquei a conhecer: supinamente (elevadamente), escabelo (banco comprido e largo), réprobo (condenado às penas do inferno), patíbulo (lugar de execução de pena de morte), prosápia (orgulho, vaidade), verdugo (pessoa que inflinge castigos físicos), melífluas (doces, suaves e harmoniosas), estentória (forte), encómio (elogio rasgado).
Ficaram-me algumas frases deste livro:
"O lógico, o natural, o simplesmente humano seria que abraão tivesse mandado o senhor à merda, mas não foi assim." p.82
"é que a vida de um deus não é tão fácil quanto vocês crêem." p.125
“A história dos homens é a história dos seus desentendimentos com deus, nem ele nos entende a nós , nem nós o entendemos a ele .”José Saramago
Saramago escreveu outro livro. O seu título é “Caim”, e Caim é um dos protagonistas principais. Outro é Deus, outro ainda é a humanidade nas suas diferentes expressões. Neste livro, tal como nos anteriores, “O Evangelho segundo Jesus Cristo”, por exemplo, o autor não recua diante de nada nem procura subterfúgios no momento de abordar o que, durante milénios, em todas as culturas e civilizações foi considerado intocável e não nomeável: a divindade e o conjunto de normas e preceitos que os homens estabelecem em torno a essa figura para exigir a si mesmos - ou talvez fosse melhor dizer para exigir a outros - uma fé inquebrantável e absoluta, em que tudo se justifica, desde negar-se a si mesmo até à extenuação, ou morrer oferecido em sacrifício, ou matar em nome de Deus.
Caim não é um tratado de teologia, nem um ensaio, nem um ajuste de contas: é uma ficção em que Saramago põe à prova a sua capacidade narrativa ao contar, no seu peculiar estilo, uma história de que todos conhecemos a música e alguns fragmentos da letra. Pois bem, com a cabeça alta, que é como há que enfrentar o poder, sem medos nem respeitos excessivos, José Saramago escreveu um livro que não nos vai deixar indiferentes, que provocará nos leitores desconcerto e talvez alguma angústia, porém, amigos, a grande literatura está aí para cravar-se em nós como um punhal na barriga, não para nos adormecer como se estivéssemos num opiário e o mundo fosse pura fantasia.
Pilar del Río.
Fonte: fnac.pt
3 comentários:
Adoro Saramago mas este é certamente um dos seus livros favoritos, mais até que o "Evangelho", a forma como ele torna ridículas certas situações e depois nos exige uma reflexão é exímia. E eu não sou católica. Imagino o que fará a um crente.
Seria pouco dizer que adoro quando Saramago escreve sobre o binómio Deus v Homem. Só o "Evangelho segundo Jesus Cristo" já o li seis vezes, e desengane-se quem me julga cansado dele. "Caim" li "apenas" três vezes, mas novas visitas lho reservo. Este meu Amigo José é dos poucos que me fazem suspender a leitura por momentos, e PENSAR no que disse, para enfim prosseguir. Mas já não o mesmo.
Em conclusão, as leituras de Saramago são simplesmente deliciosas :) Obrigada pela visita!
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